“There’s something happening here”: O som do mundo a arder e o nosso silêncio

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“There’s something happening here”: O som do mundo a arder e o nosso silêncio

“There’s something happening here”: O som do mundo a arder e o nosso silêncio

There’s something happening here / But what it is ain’t exactly clear.”

Desta forma começa a canção “For What It’s Worth”, composta por Stephen Stills, e eternizada pelos Buffalo Springfield em 1966 na sequência dos motins no Sunset Strip em Los Angeles no mesmo ano. A canção tornou-se um hino do counter-culture dos anos 60 nos EUA, tornou-se também um hino contra o conformismo e a repressão do Estado, de certa forma um espelho dos EUA à data, um estado repressivo interna e externamente, em guerra no Vietname e contra a sua própria população afro-americana. Embora a música tenha um tom calmo, a mensagem é urgente e cada vez mais adequada aos tempos que vivemos, a letra passa a mensagem de que somos ensinados a não ver, não ouvir e a não falar.

Hoje quase 60 anos depois, o verso inicial continua tão importante como quando escrito, algo está a acontecer. O que difere é que nos sabemos o que está a acontecer, no entanto somos encorajados a esquecer e ignorar. Sabemos que Gaza está em ruínas, o Sudão colapsou, Myanmar está enterrado numa guerra interminável, democracias a recuar perante a critica, a guerra a ser profetizada e promovida por líderes políticos. O mundo está a arder e nós a vermos e ouvirmos e a escolhermos ignorar. Não existe resposta internacional, diplomática, ou até cívica. O silêncio é a personagem principal de 2025.

Este artigo vê o presente nesta canção e pergunta o que é este som que ouvimos e ignoramos? E o que diz a nossa recusa em agir?

Step out of line, the men come and take you away”

A notícia que o Late Show de Stephen Colbert tenha sido cancelado após o fim da próxima temporada em 2026 é um exemplo claro de censura, que embora possa parecer secundário a situação atual mundial, mas diz muito do estado das chamadas democracias ocidentais. Colbert que tinha criticado a CBS por ter feito um acordo com a equipa Trump no valor de 16 milhões, foi sumariamente dispensado a pedido da Paramount dona da CBS, liderada por David Ellison, conhecido apoiante de Trump. O Writers Guild of America afirmou que considera esta ação por parte da CBS um suborno à administração Trump. O significado de tal ação é profundo, o afastamento de uma das vozes críticas da televisão, precisamente por fazer o seu papel de sátira política, revela um cenário onde o humor já não é um espaço para dissidência.

A sátira pública é um barómetro da saúde da democracia, nos EUA figuras extremamente importantes como George Carlin, Jon Stewart e John Oliver desafiam e desafiaram o poder através do riso. Colbert de uma certa forma segue essa tradição. A sua eliminação sob o domínio e a pressão do conluio entre o mundo empresarial e a política, não vai ser um caso isolado, vai seguramente voltar a acontecer. Este acontecimento é apenas mais um sintoma de intolerância ao pensamento critico, mesmo em espaços supostamente plurais e livres.

Step out of line, the men come and take you away” adquire aqui um peso importante e torna-se literal. O silenciamento e afastamento de Colbert serve para disciplinar, para mostrar o custo da critica, e demonstra-nos a todos que a fronteira entre democracia e autoritarismo pode ser muito facilmente atravessada.

Children, what’s that sound?”

A imagem de crianças palestinianas mortas num ponto de recolha de água em Gaza, uma imagem chocante, é ignorada pela grande maioria dos governos ocidentais, pelo governo português! Tal como o é a fome forçada. Tal como o é a violação da soberania Síria, por parte de Israel. Em nenhum destes acontecimentos o Ministério dos Negócios Estrangeiros se pronunciou, à exceção apenas de quando uma igreja católica foi atingida em Gaza ferindo 10 pessoas e matando 3, aí o Ministério fez um comunicado condenando o ataque…

Este padrão de seletividade não é acidental, mas sim estrutural. É assim que funciona a moral diplomática portuguesa e europeia, reconhece o sofrimento quando a narrativa não destabiliza a aliança com os EUA e Israel, quando os mortos são Católicos e não Árabes. Quando há incomodidade politica, o silêncio é o curso de ação. É chocante a notícia revelada pelo jornal Público que informa que Portugal se opôs contra a referência à fome forçada por Israel aos Palestinianos, num comunicado do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da CPLP.

Esta inação do MNE e do Governo perante a situação Palestiniana são uma traição à Constituição Portuguesa, que no seu artigo 7º, obriga o Estado a defender e promover a autodeterminação dos povos, o respeito pelos direitos humanos e o cumprimento do direito internacional. Quando um estado, o Português, impõe a uma organização multilateral da qual integra a supressão da expressão num comunicado oficial, do direito de um povo ocupado à alimentação, não estamos no âmbito da diplomacia, mas sim da cumplicidade com o ocupante. A cumplicidade hipócrita está a tornar-se na linguagem oficial do multilateralismo. O que se apaga com cada silêncio, é o conceito de coerência diplomática, quando os direitos humanos se aplicam apenas a aliados, deixam de ser direitos, tornam-se em instrumentos de poder e tortura usados sobre os mais fracos e indefesos.

Children, what’s that sound?” É o som da morte abafada por comunicados. É o som das vítimas ignoradas porque são ‘as erradas’, porque para o governo português só os católicos palestinianos são vitimas.

Paranoia strikes deep / Into your life it will creep”

A Europa está a viver um verdadeiro ponto de viragem, desde o início do ano de 2025 que a Europa está cada vez mais focada no rearmamento. A Comissão Europeia desenvolveu o plano Readiness 2030, no qual prevê a utilização de 800 mil milhões de Euros em financiamento militar, com a inclusão de suspensão de regras orçamentais e de reorientação de fundos de outras áreas para o armamento.

A “paranoia” solidificou-se em doutrina Europeia, a guerra é o objetivo. O próprio Chanceler alemão Merz o confirmou em entrevista BBC Radio 4 publicada no dia 19 de Julho de 2025, defendendo os comentários do seu Ministro da Defesa Boris Pistorius em Junho de 2025. Além da destruição e das mortes resultantes de guerras continuadas, os fundos europeus serão desviados de matérias cruciais, principalmente da transição climática, da educação e dos cuidados sociais, de extrema importância num continente e mundo em que a desigualdade continua a aumentar.

A ideia atual que nos mantém reféns é que a falta de uma Europa fortemente armada é negligência, e não só não questionamos o rearmamento, como nos perguntamos o porquê de ainda não estarmos prontos.

Battle lines being drawn / Nobody’s right if everyone is wrong” – Sudão e Myanmar

No Sudão desde Abril de 2023, a guerra civil entre as Forças Armadas e os paramilitares da Rapid Support Forces (RSF) já provocou mais de 150.000 mortes só até 7 de Janeiro de 2025 de acordo com o New York Times. A este elevado número de mortes acresce o número de pessoas deslocadas internamente, que era de 11.6 milhões no final de 2024, números do Internal Displacement Monitoring Centre. A ONU já alertou para a possibilidade de genocídio, provando a existência de massacres cometidos por ambos os lados contra a população civil. A 17 de Junho um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU alertou para o intensificar do conflito, mencionando expressamente o aumento da violência sexual contra raparigas e mulheres principalmente em áreas do controlo do RSF. No entanto, a cobertura de esta tragédia, tem sido praticamente ignorada, e a mesma continua sem resposta internacional adequada e coordenada.

Porquê? Porque os Emirados Árabes Unidos, principais financiadores e armadores do RSF, são aliados cruciais dos países ocidentais. Fornecem petróleo, compram clubes de futebol, investem em empresas de várias áreas. A moeda de troca é a imunidade política sua e dos seus aliados.

A guerra no Sudão revela uma verdade incómoda, há guerras invisíveis porque são politicamente e economicamente inconvenientes. Os Emirados são donos de parte da ordem liberal mundial, e, portanto, para não causar danos aos donos esta ordem permite massacres em nome da estabilidade.

Além do Sudão, o Myanmar sofre com a guerra desde o golpe de 2021. A repressão que nunca tinha sido totalmente suspensa, voltou a níveis altíssimos. O regime militar continua a cometer regularmente crimes hediondos contra a sua própria população. Entre 2021 e 2024, 6092 civis foram mortos, 28.501 presos, mais de 3.5 milhões de pessoas deslocadas internamente e mais de 20 milhões a precisar de ajuda humanitária, de acordo com a ONU. No entanto, o Conselho de Segurança permanece inativo, tendo somente preparado uma resolução (Resolução 2669 (2022)) relativa à situação, na qual a China, Rússia e India se abstiveram, tendo os outros 12 países votado a favor. A resposta europeia tem sido também frágil, limitando-se a expressar preocupação, apelar à contenção e afirmar, aquando do terramoto de 28 de Março de 2025 que matou mais de 3600 pessoas, seguir com atenção a situação.

A situação no Myanmar, é paradigmatica do atual sistema internacional, o sistema fracassa em proteger civis quando não há interesse estratégico envolvido. Quando todos falham, a falha torna-se no sistema, “Nobody’s right if everybody’s wrong.”

A thousand people in the street / Singing songs and they carrying signs / Mostly say, ‘Hooray for our side’”

A guerra do Vietname não terminou apenas por desgaste militar e por derrotas no terreno. Terminou porque durante mais de uma década, milhões de pessoas nos EUA saíram à rua de forma organizada, enfrentando a censura e repressão daqueles que pretendiam que a guerra continuasse. Terminou porque o mundo viu aldeias incendiadas, crianças queimadas com napalm, e soldados traumatizados. Terminou porque os soldados americanos voltavam em sacos pretos e as mentiras do governo sobre a guerra deixaram de funcionar perante a mobilização civil.

Nos anos 60 e 70 nos EUA o protesto não era apenas simbólico, paralisava cidades, expunha as contradições das narrativas governamentais. As universidades eram centros de resistência e rutura, músicos, escritores, e muitos outros artistas denunciavam a guerra, personagens importantes como Muhammad Ali recusaram alistar-se. O movimento contra a guerra não foi um apelo à paz abstrata, foi sim uma força ativa de combate político que obrigou uma superpotência a recuar.

Hoje, paradoxalmente temos acesso a mais imagens, mais dados, temos mais conhecimento das violações de direitos humanos do que em qualquer outro tempo da nossa história, vemos em direto os bombardeamentos, sabemos com precisão e com evidência o que está a acontecer, e, no entanto, protestamos menos. A indignação fica limitada às redes sociais e os confrontos travam-se nestas.

O que precisamos hoje, agora, são movimentos políticos e cívicos que assentem nos princípios universais do direito à vida, dignidade, saúde, comida, água, habitação, higiene, e também à autodeterminação. Precisamos de protestos que saibam e tenham a coragem de contestar as injustiças, mesmo quando cometidas pelos nossos estados e aliados. Que a denúncia das condições miseráveis em Gaza, que a exigência das sanções contra o RSF tenha a mesma força com que se denuncia a invasão da Ucrânia pela Rússia. Que se exija com vigor que os responsáveis por crimes contra a humanidade de Israel, de Myanmar, do Sudão, e de tantos outros Estados sejam juridicamente condenados pelas suas ações.

Hoje é preciso coerência, é preciso uma resistência que não esteja guiada por agendas partidárias, mas por compromissos éticos e morais.

We better stop / Hey, what’s that sound? / Everybody look, what’s going down?”

O mundo está em silêncio. Não por falta de som, mas pelo excesso de silêncios. O som da guerra, da fome, e da justiça continua muito alto em 2025, demasiadamente alto. Mas o som mais estridente e perigoso é o da normalização do sofrimento dos povos, o das democracias que estão a falir moralmente, das instituições que hesitam e não agem, e das sociedades que se habituam.

Everybody look, what’s going down?” serve de apelo, apelo a nomear o que vimos e ouvimos. Está mais que na hora de acabar com a ideia de “neutralidade” e da empatia seletiva. Não nos falta informação. Falta coragem. Falta vontade de gritar NÃO. Não ao silêncio. O que se está a passar é claro, só falta decidir se queremos agir.

O silêncio não é prudência. É abdicar de lutar.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Visao

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